sábado, 26 de março de 2016

Se afastada, Dilma não terá ajuda do Mercosul, diz Francisco Rezek

MARIANA CARNEIRO
Quando o Mercosul nasceu, há exatos 25 anos, o presidente do Brasil era Fernando Collor de Mello. Afastado do cargo no ano seguinte, em 1992, em um processo de impeachment, Collor não foi socorrido pelos companheiros de bloco.
O então chanceler brasileiro, o jurista Francisco Rezek, 72, faz essa observação ao afirmar que, caso a presidente Dilma Rousseff perca o cargo em processo semelhante, ela também não deverá contar com o apoio externo em seu favor.
"O processo de impeachment é perfeitamente constitucional", afirmou Rezek, em entrevista à Folha.
"Além disso, depois que terminou a era kirchnerista, não vejo no âmbito do Mercosul, exceto pela Venezuela, onde o governo brasileiro encontraria apoio. Não será na Argentina de [Mauricio] Macri, dificilmente no Uruguai, menos ainda no governo liberal do Paraguai".
Folha - Qual foi o incentivo do Brasil para criar o Mercosul?
Francisco Rezek - A semente estava no entendimento bilateral entre Argentina e Brasil, ao tempo dos governos de [Raúl] Alfonsín e [José] Sarney. Isso é mais do que sabido. Quando começou o governo Collor, o Itamaraty, não exatamente a presidência da República, aqueceu o assunto, em comunicação já não apenas com a Argentina. E foi aí que a ideia de uma cooperação bilateral se transformou numa integração econômica regional.
Havia a tentativa de replicar a comunidade europeia.
Sim, mas com extremo realismo. Nós olhávamos para a comunidade europeia e víamos um sonho dificilmente realizável. Porque na Europa, apesar das diferenças quantitativas, de população e território, havia uma igualdade qualitativa -a renda per capita dos cidadãos dos seis países fundadores não era acentuadamente desigual.
Nós tínhamos consciência de que aqui as coisas seriam diferentes, primeiro porque éramos países economicamente mais frágeis. Segundo porque o enorme peso do fator histórico, que obrigou os europeus a se agregarem a fim de evitar uma Terceira Guerra Mundial, não existia aqui. Fizemos porque era bom, mas não era uma questão de vida ou morte.
E havia um terceiro problema. O Brasil era a principal das nações, o maior dos quatro parceiros, e nós não tínhamos moeda. Como se faz uma integração econômica sendo que o mais forte não tem moeda? Porque a inflação, ninguém sabia como neutralizá-la àquele momento.
A 'falta de moeda' no Brasil, em 1991, fez do Mercosul menos ambicioso?
Sim. Mesmo quando o Brasil alcançou a estabilidade monetária, os outros enfrentaram problemas. Isso não interfere diretamente no projeto de integração, mas era um empecilho, que causava preocupações.
E havia ainda o sentido de autocrítica e continência, que nos dominava à época. Pensávamos: "não vamos nos expor ao ridículo, não vamos criar ilusões e não vamos criar despesas sem que haja resultados".
A burocracia de Bruxelas é extremamente poderosa e eles nos pressionavam para termos coisas parecidas com o que faziam, sede, secretário-geral, aparato...
Nós resistíamos com firmeza quase agressiva, dizendo que as nossas condições não eram as mesmas. O Mercosul nasceu sem personalidade jurídica. Era apenas uma reunião periódica de quatro chefes de Estado, chanceleres e ministros da Fazenda.
Por quê?
Não sabíamos se iria funcionar, se corresponderia aos nossos projetos e, enquanto não sabíamos, não iríamos nos precipitar formalizando coisas e criando dispêndios.
O Mercosul nasce em 1991 mas só vem a ter personalidade jurídica em 1995.
E, tal como previsto desde a primeira hora, o ritmo é extremamente lento.
Por que tem ritmo lento? É a principal crítica ao bloco.
Por nossas circunstâncias econômicas e políticas. Me lembro de, uma vez em Buenos Aires, já após meu período como chanceler, que era mais fácil para um brasileiro entrar na Suiça do que na Argentina. Ou seja, ainda tínhamos problemas de ordem cartorial que não foram abolidos na primeira hora. A terceira e última fase da integração, o mercado comum autêntico, com o planejamento da economia e da produção em comum, ainda está distante. Isso se deve a problemas de várias naturezas, incidentes econômicos e políticos.
Havia o intuito de ser um projeto continental?
Não queríamos colocar um sonho maior do que nos permitiam sonhar. Chile e Bolívia entraram como associados e, só anos depois, houve o incidente que propiciou o ingresso da Venezuela, no governo do presidente Hugo Chávez.
O parlamento paraguaio resistia à entrada da Venezuela e aí houve a deposição por impeachment do presidente Fernando Lugo [em 2012].
Naquele momento, embora Lugo não clamasse por solidariedade externa, os governos da Argentina e do Brasil resolveram dizer que aquilo não foi correto e resolveram rogar a cláusula democrática para suspender o Paraguai. [O Paraguai foi suspenso do Mercosul por pouco mais de um ano e, neste ínterim, a Venezuela teve sua entrada no Mercosul aprovada pelos demais sócios].
A cláusula foi mal utilizada?
A cláusula é de 1998. Foi acionada sob o argumento de que o processo paraguaio foi rápido demais, fulminante...
Mas os prazos previstos na lei paraguaia são bem mais curtos. Então aquilo que não condiz com nossos prazos é antidemocrático e temos o direito de impor nossos padrões? Foi algo com um fundo ideológico semelhante ao que aconteceu em Honduras, no caso Manuel Zelaya.
Não é algo a lamentar, mas é de se estranhar o aspecto irônico da história: usar a cláusula para admitir a Venezuela, que já era um regime de fidelidade duvidosa ao princípio democrático.
O ingresso foi resultado de uma manobra de valor ético discutível, mas é fato consumado. E a presença do país no grupo é objetivamente uma coisa boa. Chávez se foi, Maduro não ficará no cargo indefinidamente. Teremos a qualquer momento um parceiro cuja presença é positiva. E, verdade seja dita, a Venezuela foi o único país que se empenhou em entrar no Mercosul, embora com uma coreografia muito matreira. Os outros nem em 1991, nem depois.
A indústria brasileira se queixa que o Mercosul amarrou os países à exigência de negociar em conjunto acordos comerciais. O bloco deveria mudar?
Essa rediscussão não seria muito fácil agora. Estamos em um momento de reflexão e expectativa. Não vejo os presidentes rediscutindo neste momento a relação no Mercosul. Há indefinições no ar, em razão da situação de Brasil e Venezuela.
Com este momento na política interna, o Brasil não tem condições de discutir coisa alguma no exterior. A Venezuela menos ainda. A Argentina está reconsiderando uma série de políticas, estabelecendo um projeto que ainda não está bem definido. O Paraguai e o Uruguai não são capazes de ser motores desse novo diálogo.
Os países do Mercosul poderiam acionar a cláusula democrática contra o Brasil ou adotar outro tipo de sanção em caso de impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Um dos fundadores do Mercosul foi Fernando Collor de Mello e ninguém cogitou isso à época [do seu afastamento]. O processo de impeachment é perfeitamente constitucional.
É impensável que, na hipótese de que o Congresso Nacional decida pelo crime de responsabilidade, o governo busque apoio em fontes externas. Além disso, depois que terminou a era kirchnerista, não vejo no âmbito do Mercosul, exceto pela Venezuela, onde o governo brasileiro encontraria apoio. Não será na Argentina de [Mauricio] Macri, dificilmente no Uruguai, menos ainda no governo liberal do Paraguai.
-
RAIO-X
Idade
72 anos
Formação
Graduado em Direito pela UFMG, com doutorado pela Universidade de Paris e pós-doutorado pela Universidade de Oxford (Inglaterra)
Atuação
Foi ministro de Relações Exteriores do Brasil entre 1990 e 1992; ministro do Supremo Tribunal Federal entre 1983 e 1990 e entre 1992 e 1997. Presidiu o Tribunal Superior Eleitoral na primeira eleição direta da redemocratização, em 1989. Em 1997 foi eleito pela Assembleia Geral da ONU para um mandato de nove anos na corte Internacional de Haia

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